segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Retalhos

*Texto escrito em 9/10/2009, desculpem-me os raros amigos que já leram minhas palavras néscias. Mas tenho tido dificuldades de escrever novamente. Tem faltado emoções expressíveis.


Talvez a vida seja como uma colcha de retalhos, daquelas que minha vó Maria, (mineira, analfabeta, que tinha vergonha de sorrir e mostrar os dentes)... talvez a vida seja como uma dessas colchas, costuradas com tamanho esmero e cuidado.
Um pequeno quadrado de tafetá rosa do vestido de baile da moça, que naquela noite pôs uma flor no cabelo, um velho colar no pescoço, pequenos brincos de pérolas de plástico, e dançou a noite inteira, como se fosse a ultima, em cada par desejou encontrar um acalanto, um amor suspirado aos cantos. Mas da grande noite, do grande baile, a maior lembrança foram os pés calejados.
Aquele pequeno quadrado de linho de boa qualidade que outrora fora o terno bem costurado do maior galanteador da cidade, quantos abraços femininos não sentiu aquele terno, quantas noites não foi arrancado com violência e paixão, quantas vezes o terno cheirava à cigarros de palha, desses que são enrolados nas coxas das mulatas. Tantas foram as vezes que tamanho desejo arrancou o botão superior, mas quando a vida deixou o corpo, ninguém achou que o terno merecia o caixão.
No pequeno pedaço de chita ficou os sonhos da menina da roça, tímida como bicho arisco, escondia-se de olhares furtivos. Olhava para baixo por medo de olhar nos olhos e quem sabe perder-se naquele oceano azul...
O tecido rendado branco, um dia teve a glória fracassada de pertencer ao vestido da noiva abandonada no altar em manhã de sol no mês de maio. Os sinos badalaram anunciando o casamento, a igreja encheu-se das mais nobres e pérfidas pessoas. Os minutos viraram anos e noivo não chegava. O penteado, a linda tiara, o véu como manto da virgindade, começaram a desmoronar diante do desespero transformado em loucura da moça que a vida desejou entregar a um homem.
O quadradinho de pano azul vivo, as memórias de uma antiga camisa de futebol, que vestia o peito do menino arteiro. A pelada no campinho de várzea, as aventuras montadas sobre a bicicleta, roubar as jabuticabas do velho ranzinza no fim da rua. A criança que deixava as freiras da escola quase loucas de ira e depois ria-se gostoso das travessuras. Fugia, corria com toda a força que os pulmões lhe davam quando via de longe o chinelo e a ameaça da surra punitiva.
O cetim preto vestiu a viúva que de tantas lágrimas derramou em vida durante o enterro estava seca. A mulher perguntava-se porque sentia-se tão aliviada, por fim cessaria as noites sofridas, em que trancava-se no banheiro para fugir da furia ébria do desconhecido com quem dividia o leito por mais de vinte anos. Acabavam-se ali as noites dormidas no tapete de crochê que ficava em frente ao vaso sanitário. Acabava-se ali as desculpas para os olhos cor roxos e inchados. Findava o martírio de uma vida divida à dois.
É somos retalhos de costura bem feita aqui, e meio desalinhados acolá.

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