Não conseguia dormir, era a terceira ou quarta vez somente naquela semana. Passavam das duas da madrugada, revirava na cama. Culpava o café em hora inapropriada, a cabeça cheia de problemas, a velha mania de tirar as casquinhas das feridas existenciais. Não dormia!
Lembrou-se da menina que foi um dia, que gostava de se esconder pelo enorme quintal da casa onde passou a infância para simplesmente olhar o céu. Era ali, olhando o céu que tinha certeza de que a Terra era redonda, como a tia Ruth havia ensinado na primeira série, era olhando o céu que aquela menina também tinha certeza de que Deus existia. A lua e as estrelas só podiam ser bonitas daquele jeito, por que Deus existia, e nem adiantava argumentar com uma balela de gases e luzes refletidas, era Deus. E como era divertido ver todos procurando por ela. Ficava ali, com as pernas junto ao corpo num cantinho, só observando. Veio a adolescência e aquele sentimento de não pertencimento, passou a fazer o estranho ritual da infância com uma freqüência ainda maior.
Hoje já havia passado a infância e adolescência, e ela também deixou pra trás o velho hábito. E na cama que não lhe trazia nem sono, nem alento, recitou mentalmente Fernando Pessoa “Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração." Subitamente levantou, nua, aliás nua não, ela usava um par de meias, tinha frio, porra. Enrolou-se no cobertor, pegou displicentemente um cigarro, acendeu-o. Sentou-se no quintal e pôs-se a olhar o céu, tal qual fazia quando era apenas uma menina. Mas agora carregava cicatrizes, colecionava fracassos, um sorriso que ficou amarelo quando resolveu crescer. Entretanto, ali, nua sob o céu voltou a ser a menina que foi um dia.
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