Nós mulheres fomos primeiro deusas da fertilidade, carregávamos no ventre e na pele Gaia, a natureza nua se manifesta em nossos corpos e sangue. Por isso ao invés de “Pai nosso, que estais no céu” quero mesmo “Mãe nossa, que estais na terra”. O homem percebendo da enorme vantagem que carregamos, tratou de macular nossa natureza. O ser humano é um desses bichos traiçoeiros que ao menor sinal de uma ameaça, utilizam-se do ataque como estratégia de defesa. Por milênios fomos subtraídas, nosso corpo que outrora fora símbolo da vida, reduzido de acordo com a mentalidade masculina, em algo sujo, impróprio e corruptor.
A sociedade burguesa que surge com força no século XIX e trouxe consigo uma sede obsessiva por status, logo percebeu o enorme potencial de influência que o corpo feminino exercia, apoderou-se dele, vendeu-o junto com sua enorme montanha de inutilidades. Mas não era qualquer corpo que lhe interessava, trataram logo de definir um padrão de beleza, normatizaram a natureza, deram-lhe regras para seguir. Associaram esse corpo “perfeito” ao luxo e poder. Fizeram da beleza como chamou Michelle Perrot um “espetáculo do homem”. Uma podre caixa de Pandora se abriu.
Olhe as propagandas de perfumes de grifes, mulheres ditas lindas, ao lado de homens dirigindo conversíveis ou em iates de luxo, que a grande maioria das pessoas se quer chegará a ver em sua vida. Detesto ver a maneira como transformaram o corpo feminino em mais uma mercadoria exposta na prateleira. Por mais lutas que tenhamos ganhado, ainda não conseguimos vencer aquela que Gilberto Freyre chamou de “mulher ornamental”, uma mulher subordinada ao patriarcado e com o corpo aberto a ornamentação.
Não precisamos ir tão longe até propagandas de perfumes franceses, um dos mais conhecidos produtos nacionais adora ser veiculado a imagens de mulheres esculturais: a cerveja. Quando vamos tomar nossa cervejinha ao final do dia no boteco do seu Joaquim a caminho de casa, somos bombardeadas com cartazes de mulheres usando o mínimo de roupa, onde o dito produto anunciado (a cerveja) quase não aparece.
Recentemente foi ao ar um comercial da cerveja Devassa (o apelo sexual no nome da marca é tão óbvio, que considero desnecessário perder meu tempo discorrendo sobre), a propaganda é estrelada por uma moça que a mídia nacional desde a década de 1990 construiu a imagem, primeiro de menina perfeita e bem comportada, depois de mulher recatada e boa esposa. O slogan diz “Todo mundo tem um lado devassa”, a publicidade abusiva da marca traz à tona a eterna dualidade na qual os homens encarceraram as mulheres. De um lado a santa de outro a puta. Lamento, mas eu não quero ser nem uma e nem a outra. Contudo ao observarmos as campanhas publicitárias não devemos nos esquecer que estas apenas refletem o contexto no qual estão inseridas.
Como se já não bastasse sermos eternamente comparadas às estrelas da TV e do cinema, com seus corpos perfeitos, cabelos lisos e louros. Fazendo com que tantas mulheres buscassem incessantemente essa forma ditada. Esse padrão estético cheio de regras e normas, alinhado. Desculpe-me sociedade, mas eu gosto mesmo de uma certa anarquia na beleza, sem padrão, multifacetada, diversa. Chega de uma mulher modelo! Somos mulheres, no plural cada uma com sua particularidade, seu encanto e seu desencanto também, afinal, não somos e nem ambicionamos ser perfeitas. Quero a imperfeição! Vamos nos rebelar contra essa monotonia estética, vamos cultivar nossa naturalidade incorreta. Viva aos teus cachos negros! Viva as suas gordurinhas extras! Viva aos teus quadris largos! Viva a nós!
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Santos de & SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
SAMARÃO, Liliany. “O espetáculo da publicidade: a representação do corpo feminino na mídia”. In Contemporânea, n.8, 2007.
FREYRE, Gilberto. Modos de homem & Modas de mulher. Rio de Janeiro : Record, 1986.